Anjo rabiscado de tinta


 - Olá, meu nome é Megan Green ... Sei que não passo de uma estranha pra você... Mas, preciso que confie em mim... E se você permitir... Eu vou levá-la para casa...

Era o dia de sair daquelas paredes brancas e casa havia se tornado um substantivo bastante relativo para a jovem. Evelyn se despediu desde a faxineira que entrava em seu quarto para limpá-lo ao médico cirurgião com quem conversava as vezes. As enfermeiras chegaram a trazer lembrancinhas de despedida para Evelyn e Philippe. Ambos pareciam ter uma qualidade em comum, conquistar as pessoas em seu redor. Hunter quase derrubou a garota diante da euforia de rever sua dona sã e salva, ela o abraçou com força. Devia sua vida ao cachorro, e isso, era uma coisa imutável.

Evelyn examinou os documentos intrigada.
- Está escrito Evelyne...
- Olhe, eu seu... Philippe me disse, mas sabe, já passou. Os médicos não reclamaram muito e soa até melhor... ó Evelyne... Eeveliiine- E saiu cantarolando o nome em vários tons.
- Evelyne... Seja bem vinda a seu novo lar...

Megan parou em frente a um prédio simples de três andares. Havia escrito em batom no muro:  "Casa dos desesperados". A mulher estacionou o carro e começou a subir as escadas. Cumprimentou algumas pessoas a quem Philippe também cumprimentara. Subiram as escadas até o segundo andar...
- Não é muito grande e está meio empoeirado. Mas é só fazer uma faxina que fica legal. Meu apartamento fica no andar de cima, 303. Se precisar de qualquer coisa pode chamar. Certo?!
- Certo...
- Com respeito ao trabalho, eu tenho um Pub... Wolf's Lair. Você pode trabalhar lá. Vai ser bom... ocupar a mente sabe?! As meninas são ótimas, você vai gostar...
- Entendo... 
Quando Megan saiu, Philippe e Evelyn foram conhecer o apartamento. As pegadas junto as patas dos animais eram desenhadas na poeira esbranquiçada. Depois de tanto tempo em um hospital, sair e recomeçar era algo que causava um frio no estômago. Philippe estava mais cuidadoso e protetor que nunca. Hunter parecia sentir a dor de sua dona e fazia-lhes carinhos que arrancavam sorrisos singelos da garota. O silencio e o clima de abandono não ajudavam muito. Evelyn se forçava a brincar vez ou outra para que Philippe não ficasse ainda mais abatido. Então a campainha tocou. Hunter ficou em alerta enquanto Daiana correu até a porta.
  
- PARABÉNS!! - Gritaram várias vozes quando a porta foi aberta. Havia um Homem vestido de mulher segurando um bolo:
 " Seja bem vinda à familia Evelyne" 

O homem usava um lenço amarrado na cabeça, vestia um shortinho demasiado curto com a barra desfiada, uma blusa sem manga de botão amarrada a altura do busto mostrando a barriga, uma maquiagem extremamente forte e brincos exagerados.
- Podemos entrar?- Dando pulinhos. Evelyn deu um passo para trás e ele entrou seguido por mais quatro mulheres, umas estavam com bolas e refrigerante, outras estavam com esfregões, baldes e sabão. Megan vinha mais atrás com um sorriso no rosto, acompanhada por uma mulher de porte mais bem vestido, como se não pertencesse ao primeiro grupo, ambas seguravam sacolas de compras.

- Philippe... - Perguntou discreta enquanto as mulheres arrumavam um local para colocar o bolo e os copos, e falavam de coisas que Evelyn não via sentido. - Porque ele se veste de Mulher?
- Ele é um travesti, Eve, existem alguns homens que não gostam de mulheres e- 
- Ooooooooooooooooopa, auto lá! Eu adoro mulheres, minhas melhores amigas são mulheres... Eu gosto tanto de mulheres que aderi até ao que elas gostam. Porque, convenhamos, ô coisa boa é aquelas costas largas e grandes lhe agarrando... Ui!... Até arrepiei...- Um sorriso divertido transpareceu no rosto de Evelyn diante de todo o teatro do homem.
- Prazer em conhecê-la, Cherry. Meu nome é Grace Kelly. Nós somos suas vizinhas e  viemos ajudar na sua faxina.
Evelyn conheceu cada uma delas. E, entre espanadas e glacês atirados nos rostos, ou baldes de água e sabão jogados na cabeça, ela conheceu a historia de cada uma.

Todas acabaram conhecendo Megan de um jeito diferente e todas batizaram a mulher como "Anjo rabiscado de tinta", devido as várias tatuagens de Megan. A senhora Green era casada com um militar que morreu em serviço. Com o dinheiro da pensão do governo, alugou um local onde montou o Wolf's Lair. Depois comprou um prédio onde cede quartos a alguns funcionários. Tem algumas empresas filiadas ao governo onde oferece emprego para ex presidiários, primeiro emprego e coisas do gênero. Um apoio para pessoas menos privilegiadas da sociedade. Essa é a forma que encontrou para retribuir pelos presentes que a vida lhe deu.

Grace Kelly a realidade se chama Gregory, um ex soldado do exercito. Tinha um corpo forte, definido e bronzeado, cabelos pretos e curtos, porém adorava trocar as perucas, estando cada dia com uma cor e modelo diferente nas apresentações no Pub. Seu olhar era firme e seu sorriso debochado. Filho de militar, cresceu em um ambiente extremamente tradicional. Apesar de nunca ter revelado suas preferencias sexuais no exercito, ou de nunca ter faltado com o respeito a qualquer dos oficiais, Gregory era constantemente humilhado e espancado por seu pai que o acusava de ser uma vergonha para família. Até que um dia ele cansou, saiu do exercito, saiu de casa e assim nasceu Grace Kelly apresentadora, organizadora e segurança dos shows do Wolf's Lair. Na opinião das amigas, Grace era muito mais homem que muitos homens que elas conheciam.

Mariana, assim como Grace, tinha a pele corada, olhos castanhos e cabelo cor de chocolate. Era de uma beleza singular e bastante cativante. Entre as amigas era chamada de Guaraná. A brasileira viajou para a Europa na esperança de se tornar uma modelo, porém descobriu que a agência era uma fraude. Então, dois anos depois se viu como uma prostituta e imigrante ilegal. Conseguiu sair da Agência, mas como ganhava o suficiente para sustentar os pais já idosos e para ajudar na faculdade do irmão, resolveu ficar pela Inglaterra mesmo. Porém, depois que o pequeno Harry nasceu, passou a trabalhar apenas no Pub a fim de dar uma educação descente ao garoto. 


Constance era mais baixa que Guaraná, uma espanhola apelidada de Esmeralda, tanto pelos olhos verdes quanto pela sua semelhança com uma personagem de um desenho. Tem um corpo esbelto e uma  personalidade forte. Veio para Inglaterra para morar com seu noivo, um inglês que estava passando pela Espanha a negócios e acabou se apaixonando e firmando compromisso com a garota. A família do noivo, entretanto, não aprovou o ingresso de uma latina na família e o noivado foi desfeito. Constance se viu sem ter como voltar para casa, foi chorar as mágoas na "Toca do Lobo"  onde acabou conhecendo a Megan que se ofereceu para contratá-la. Atualmente trabalha no Wolf's Lair pela noite e estuda pela manhã.

Jhenyfer era Branca, cabelos lisos pintados de vinho. Conhecida como Red Label. Extremamente critica e direta. Foi encontrada por Benjamin, filho de Megan, quando estava saindo da prisão. Jhenyfer foi presa após matar seu próprio pai com requintes de crueldade quanto tinha apenas 14 anos de Idade. Quando indagada sobre o porquê do homicídio, ela respondeu friamente que faria qualquer coisa para que ele não tocasse ou machucasse em sua irmã mais nova como fazia com ela. Molestada desde os três anos de idade, teve sua realidade transformada na prisão. Sua mãe entrou em desespero e acabou colocando veneno na comida matando a si e a irmã mais nova de Jhenyfer. Deslocada em um mundo que discrimina qualquer ex presidiário, teve seu alivio nos braços de uma desconhecida quando Megan prometeu ajudar-lhe a sobreviver. No Wolf's Lair encontrou um lar e um família.

Elouise era a mais nova da equipe antes de Evelyn chegar e roubar seu posto de mascote. E ela esta chamada exatamente assim Mascote. De olhar esperto e atento e sorriso sincero. Sobrinha de Megan, não tivera nenhum passado problemático ou nenhum trauma. Apenas, veio morar com a tia por comodidade em relação aos estudos. Encarava o trabalho no Pub como uma realização e nutre grande respeito e admiração por cada um dos membros da Equipe.

Análise


Doroty prendeu os cabelos em um gesto quase automático. Tomou um copo de café forte sem sentir o gosto enquanto, apressada, enfiava uma torrada na boca. Escorregou os braços pelas mangas do blaiser sem dificuldade. Tropeçou em um dos carrinhos de brinquedo de seu filho, o brinquedo alarmou uma sirene como a da polícia, enquanto piscava as luzes vermelhas da viatura. Encontrou os saltos de sua filha jogados sobre o sofá. Pegou as sandálias, foi até o quarto da garota e as jogou sobre a cama da menina. 
- Own manhê...- Enfiando a cabeça embaixo do travesseiro 
- Mais cuidado com suas coisas mocinha... 
A adolescente se remexeu empurrando as sandálias para fora da cama, se aconchegando ainda mais nos edredons. 

O trânsito até o hospital foi tranquilo. Então o de costume, paredes brancas, o cheiro de desinfetante e amônia. Pegou um café e um pedaço de bolo com um dos enfermeiros enquanto recebia o prontuário de mais um paciente. “Mais uma vítima de estupro, que novidade...” Soltou suspirando desanimada, a cidade estava cada vez mais violenta. 

Foi incontrolável o meio sorriso que surgiu quando abriu a pasta e viu a caligrafia de Bryan, o psicólogo que estava cuidado do caso até então, “NÃO LEIA SE ESTIVER COMENDO”. Doroty olhou para o pedaço de bolo e para o copo de café com uma certa ironia cômica no olhar, arqueou uma das sobrancelhas e colocou a nota de lado. Conhecia Bryan, apesar de jovem era um excelente profissional, de uma calma e bom humor que só a juventude consegue manter, possivelmente tenham lhe tirado do acompanhamento pelo simples fato de ele se tratar de um homem e certas pacientes que passam por esse tipo de trauma se tornam hostis ao sexo masculino. 

Doroty leu a ficha da paciente de uma forma rápida entre uma mordida e outra no pedaço de bolo. Várias escoriações... Traumatismos... Violência... Aparentemente nada fora do clichê. Clareza na observação dos faltos... coerência precisa... Meneou a cabeça enquanto dava um grande gole no café.

Podia ver uma folha com observações da Dra Kristin, que estava acompanhando o irmão da vítima. Diamante Trincado, foi como Kristin a nomeou. Checou algumas chapas, a coluna havia resistido bravamente e não quebrara por pouco. Lesões nos ossos, inflamações. Passou as folhas seguintes, teve que lutar para engolir o gole de café que ainda mantinha na boca ao ver as fotos tiradas da menina ainda cheia de terra. Haviam nove fotos detalhando nove ferimentos específicos, cortes irregulares mancando nomes na pele da garota, as outras fotos embrulharam seu estômago, a ânsia foi tão forte que Doroty fechou a pasta antes mesmo de ver o restante e foi a janela tomar um ar. A situação estava mais complicada do que parecia.

Recomposta, a psicóloga pegou a pasta e sua prancheta de anotações e seguiu para a sala. Preparava seu ânimo para são se influenciar pelo peso da paciente, seria uma consulta bastante desgastante.
~><~  
- Olá...? - Soltou notando a presença da garota na sala. A menina estava com a cabeça enfaixada assim como seus braços, usava uma bata simples de paciente e estava na janela correndo os dedos pelo vidro
- Olá - Soltou meio surpresa. - Bom dia. - A menina saiu da janela e aproximou-se da cadeira com um sorriso singelo no rosto. A mendida que sentava, fazia algumas caretas ainda sem tentar perder o sorriso - Desculpe, sentar ainda é algo complicado, dói músculos que eu nem sabia que tinha.
O bom humor da garota surpreendeu a médica.
- Pode ficar de pé se quiser - A menina acenou fazendo que não e afundou na cadeira. Vendo que a garota já estava acomodada, Doroty começou. - Bom, eu estou aqui para conversar com você.
- Por que o Dr Bryan não vem mais?
- Por que a pergunta?
- Eu gostava dele, queria saber se ele havia se pedido para parar de me acompanhar, ou se haviam retirado ele  - A menina falava em um tom casual.
- Você imagina algum motivo pelo qual ele teria pedido para parar de lhe acompanhar? - Doroty estava analisando o intelecto da garota, ao mesmo passo que tinha a impressão de a garota estar analisando todo local a sua volta. Era normal esse tipo de comportamento, pacientes que passam por esse tipo de trauma se tornam mais desconfiados e, até mesmo paranóicos, as vezes.
- O Dr Brayan é um bom médico, dá para notar o quão ele é inteligente. A personalidade dele é amistosa, isso gera uma certa confiança, mas ele é bastante novo. Seu emocional ainda não está bem treinado o suficiente, ele ainda não consegue manter a frieza como a senhora. Ele se revoltou com a minha situação quando deveria ter ficado imparcial; e como é bastante íntegro, imaginei que quando ele o notasse, fosse pedir para se afastar, para que suas emoções não influenciassem em seu julgamento.
- Você fala com bastante propriedade. - A menina a sua frente parecia ser uma caixinha de surpresas.
- Apenas diga para ele me visitar se puder, se não como meu médico, mas como um amigo. 
- Eu lhe direi. Bom, eu vou fazer algumas perguntas, acho que a mesma que já lhe fizeram, então não há com o que se surpreender. Posso começar?
- Sim.
- Seu nome
- Evelyn
- Nome completo
- Evelyn.- Reafirmou - Eu sou uma moradora de rua, não tenho família ou sobrenome

Doroty deu uma olhada nas anotações de Bryan. “Evelyn Gray'Wood”. Começava a cogitar que a garota tivesse se apaixonado pelo médico, talvez uma resposta pós traumática a atenção que estava recebendo, também influenciado pelo pelo sentimento de carência que esses traumas costumam gerar.
− Quem é Gray'Wood?
− Ah... - Soltou a garota extremamente casual – Quando eu ainda era um bebê, me encontraram no meio de uma floresta antiga de carvalhos. Então me chamavam de Evelyn Gray Wood, a Evelyn “dos troncos cinzentos“. Isso não é tecnicamente um sobrenome.
− Mas você considerou um sobrenome quando o Dr Bryan lhe perguntou, não!? - A ideia de que a menina estaria apaixonada pelo médico apenas se reafirmava, era natural que a garota se preocupasse em ter um sobrenome para dar ao médico.
− Não considerei um sobrenome. Perguntas diferentes, respostas diferentes. Ele não perguntou meu nome completo – tentando simular o tom mecânico da médica – Ele me perguntou como eu era chamada.
Doroty procurou não demostrar seu desconserto passando para próxima pergunta.
− Idade?
− Eu acho que dezenove
− Eu acho? - Acentuou a incerteza da resposta
− Sim, “eu acho”. Lembra que eu lhe falei que fui encontrada ainda bebê. Eu não tive uma mãe para me dizer em que dia eu nasci, nem para contar meus anos.
A voz da menina não era impaciente, nem irritada. Ela estava relaxada na poltrona, fazia apenas algumas caretas regular quando tentava mudar de posição, por fim, desistia. Seus olhos ainda estavam apertados do inchaço recente, assim como e seu rosto ainda permanecia algumas marcas que dançavam entre o amarelo e o arroxeado. Havia um curativo pesado na bochecha da menina que fez Doroty lembrar imediatamente das fotos, uma vertigem correu a medica que respirou fundo e continuou.
− Você gostaria de conversar alguma coisa comigo? Algo que eu possa fazer por você?
− Na verdade sim - Evelyn ajeitou a postura se aproximando da mesa da - Você pode me liberar para que eu visse Phillipe?
− O seu irmão?
− Sim.
− Bom, se você conversar comigo, eu posso tentar...
− Você promete?
− Eu prometo!
Evelyn se escostou na cadeira de novo enquanto olhava pra cima com uma cara desacreditada.
− Você é a quarta pessoa que me promete isso...
− Você é muito preocupada com ele, não é?
− Eu passei tudo o que passei para que ele ficasse, bem, então eu acho que isso é meio obvio, Não?! - A menina parecia inconformada - Eu não entendo, eu preciso chorar para vê-lo? Eu digo que está tudo bem, mas ninguém acredita.
− Evelyn - Doroty havia chegado finalmente na pedra chave - Enquanto você continuar negando o que aconteceu...- A menina a interrompeu
− Mas, pelos deuses, eu não estou negando nada. Pode ver nas anotações, eu descrevi tudo para o Bryan, para a Carter, descrevo pra você se quiser...

Doroty deu uma olhada discreta na prancheta, a ultima coisa que Bryan escrevera fazia referência ao estupro, porém, Doroty não quis parar naquele momento para ler.
− Você lembra de tudo o que aconteceu naquela noite?

Evelyn respirou findo, uma respiração lenta e comedida. Até mesmo respirar ainda lhe causava algumas dores, embora não precisar mais daqueles tubos enfiados em suas narinas fosse algo maravilhoso. Tentou, com alguma dificuldade, se firmar na cadeira de modo a ficar com uma melhor postura, com a postura de oratória que aprendera, aquela postura de um rei quando ele precisa falar e ser ouvido por um grande público, aquela postura que te coloca grande.
− Era uma noite de lua minguante...
− Você não precisa contar o que aconteceu – Atalhou Doroty com uma voz um pouco mais acuada que a normal. A menina, entretanto, continuou com seu tom normal, firme, quase poético, solene, sem dor ou tristeza.
− A lua era minguante, não daquelas luas quando já estão fininhas, morrendo, mas já não estava cheia. Eu e Philippe estavamos morando em uma casa abandonada, - Ela fez uma pausa e pareceu pensar um pouco procurando uma palavra que se adequasse - Semidestruída, na realidade, mas era um lugar seguro. E nenhum guarda ou mesmo, morador de rua vinha nos importunar, ou dizer que só deixaria nós dormirmos lá se eu me deitasse com eles. Enfim, isso não vem ao caso. - A essa altura, Evelyn já havia trocado o tom solene por um casual, como o de um adolescente contando alguma historia para os amigos - O Phillipe saiu, não me pergunte o motivo, heis que quando fui procurá-lo, ele estava numa praça com dois carros trancando sua passagem e cerca de onze homens. Acho que dois deles estavam armado e quando um desses foi atirar na Daiana, que era a cadela que o Lipe cuidava, Hunter atacou. Hunter é o nome do meu cachorro.

Evelyn notou uma leve confusão no rosto da médica – Espera deixa eu desenhar aqui, me dá um papel. - A médica obedeceu quase com um sorriso no rosto. Era engraçado o jeito da menina, ela parecia seu filho quando estava tentando contar alguma historinha da escola. Então a garota começou a desenhar dois retângulos e pequenas bolas distribuídas. O sorriso de Doroty se desfez, o que a garota estava tentando contar não era nem de longe uma historinha de escola − Aqui, esses dois eram os dois carro que estavam mais ou menos assim – Apontando para os retângulos – Aqui era Philippe e aqui Daiana, que era a cadela que estava mordendo esse cara aqui, que estava com uma arma na mão. Eu cheguei por aqui, ai o Hunter, meu cachorro atacou esse cara aqui que estava levantando a arma pra atirar na daiana. Entendeu?
− Sim...
− No meio da confusão tinha um rapazinho que estava segurando o Philippe, ele tinha cerca de... a minha idade eu acho, Marchal.
− Você decorou o nome dele?!
− Ele tentou enfiar um galho de arvore no meio das minhas pernas- Respondeu secamente − Mas, não vamos apressar a história. - voltando ao seu tom de casualidade. - O fato foi, eu peguei e taquei um galho que árvore que eu tinha trago nas costas do Marchal que estava segurando o Phillipe, o rapaz quase caiu no chão com a dor, Philipe se soltou e correu, seguido pela Daiana. Nisso, o Chad que era tipo um “líder”, eu lembro que ele foi o primeiro a me riscar, acho que foi aqui sobre o peito... Não, não... foi na coxa, isso. Foi bem aqui na coxa, bem grande. Bom, voltando, ele atirou no Hunter. Aí minha alma quase vai embora do corpo, o cachorro saiu bolando pra fora do círculo. Um dos caras da rodinha pegou os dois que estavam feridos e saiu em um dos carros. Aí, o digníssimo do Chad me ameaçou dizendo que ou eu ficava ou eu fugia e eles iriam brincar de caça ao rato e pegar eu e o Phillipe. Bom, se eu estou aqui eu não preciso dizer o que eu escolhi. Então, eles me chutaram, me socaram e rasgaram a minha roupa. Eu tentava reagir, mas, convenhamos eram nove homens. - Ela fez um apequena pausa como para se organizar a ordem dos acontecimentos, ou simplesmente para atestar que não estava esquecendo nenhum fato importante – Chad foi o primeiro, eu tinha levado muitos chutes na cabeça e estava meio tonta. - Evelyn gesticulava tentando para da mais ênfase à sensação de tontura - Ele enfiou sua arma em mim e ficou ameaçando atirar. “Eu sempre quis saber onde sairia a bala se eu atirasse daqui”. E ele empurrava e esfregava a arma em mim assim ó.- gesticulando - Bom, ele ficou cada vez mais violento a medida que não conseguia me fazer gritar.
− Você não gritou?
− Talvez eu arquejado diante da dor, e em alguns momentos até mesmo chorrado. Mas meu rosto já estava tão melado se sangue, suor, cuspe e outras coisas que acredito que eles não tenham nem percebido.

Evelyn falava com um certo desolamento conformado, o olhar da menina era doce, até mesmo inocente, uma voz meiga e graciosa, que Doroty, se comoveu, mas não demostrou. - Então eles começaram as apostas de quem iria me fazer gritar ou  pedir para que “pelo amor de deus” eles parassem. Implorar.
- Evelyn...
- Em algum momento, não sei se quando Brock me chutou no rosto ou se foi um chute do Marchal, mas meu maxilar deslocou. Foi, até então, uma das dores mais agoniantes e desesperadora que eu sentira. E eu mal sabia o que me aguardava - Ela soltou com um sorriso de olhar triste, lacrimoso. Então mudou o tom - O Broock parecia aquelas crianças que gostam de brincar de carimbar, sabe. A bota dele tinha um negócio de ferro. Acho que ele quebrou umas três costelas minhas. - E fez uma pausa pensativa - Quantas costelas eu quebrei?
- Eu não posso dizer...
- Ah, por favor, é sobre mim.
- Me desculpe...- Doroty estava irredutível, mas não resistiu a incistência e a cara de curiosidade da menina.
- Três do lado direito, duas do lado esquerdo, as inferiores, não chegaram a ferfurar o coração.
- Eu sabia! - Soltou triunfante.
Era notório, a menina estava usando todos os artifícios possíveis para se distrair da dor. Entretanto, em momento algum negava sua existência. Isso confundia Doroty, transparência da menina aturdoava alguém treinado para encontrar segredos escondidos ou ocultados, como um pirata atordoado ao receber um tesouro sem ter que desenterra-lo.
- Bom, continuando... Mesmo depois que meu maxilar deslocou eles continuaram enfiando seus membros em minha boca, acho que foi nesse momento que machucaram tanto minha garganta, por que sem o maxilar...
- Eu entendi. - Atalhou a explicação
- Entendeu, né. Olha, se a senhora poder dar um recado a Dra Carter, avisa pra ela que ela é uma boa média, que eu não tenho nada contra ela, eu só não falava muito em nossos encontros porque minha garganta doía muito.
- Eu darei o recado. Os dois recados.
A menina sorriu um sorriso sincero, satisfeito, entretanto marcado.
- Eu quase vomitei várias vezes, o gosto deles, o cheiro deles misturado som o sague da minha garganta era horrível. - Fez uma pequena pausa - Eu não ouvi o nome de todos, desculpe. Realmente só lembro do Chad, do Broock e do Marchal.
- Você lembra do rosto deles?
- Nitidamente.
Dority respeitou a pausa do momento até que a menina rompeu o silêncio.
- Você não quer saber o resto da história?
- Você quer contar?
- Você me prometeu que me deixaria ver o Philippe. - A médica assentiu - Então anote. - Retomou em um tom sucinto - Após me violarem, todos eles, algumas vezes sendo dois ao mesmo tempo, algumas vezes colocando a arma dentro de mim enquanto me penetravam por trás, isso quando não tinha um a minha boca, após me chutarem e me socarem. Após Marchal pegar o galho com o qual eu havia lhe golpeado e tentar enfiar em mim enquanto outros me seguravam suspensa no ar com as pernas abertas e o garoto, irritado por não conseguir enfiar o galho me acertar na barriga...- Ela fez uma pausa e acrescentou tomando um tom casual meio confuso - Nessa hora tudo girou. Eu sei que eu caí no chão. Devia estar me contorcendo. Me chutaram muito, acho que foi nesse momento que deslocaram meu maxilar. Enfim... - Gesticulando como se quisesse encerrar os questionamentos e voltar a narrativa - Após tudo isso, Chad quebrou uma garrafa e começou a rasgar seu nome na minha pele e os outros seguiram o líder. Eu pensava que estava dolorida demais para sentir dor, mas não estava. Uma espada, uma faca, uma lâmina ao menos tem um corte liso, mas uma garrafa quebrada... Eu pensava que ia morrer de tanta dor. Eu queria desmaiar. Mas nãaaao - E soltou aquele sorriso triste outra vez - eu tinha que ficar acordada - rindo. O sorriso esmureceu como um sol se pondo no horisonte, deixando apenas um olhar, um olhar que transbordava um sentimento que Doroty não conseguiu captar. A menina olhou para a médica e continuou como se estivesse se desculpando ante um questionamento que a médica já fosse lhe fazer, uma voz recuada, baixa.- Eu não sei quem enfiou a garrafa dentro de mim. Não sei qual deles. Só sei que eles empurraram tantas vezes, com tanta violência, com tanta força, que a garrafa se estilhaçou. - A voz da menina fez os olhos de Doroty lacrimejarem, ela tinha o tom de uma criança, um desolamento comformado que apertava o coração -
Eu descobrir que é impossível alguem morrer de dor. - Soltou tentando esboçar um sorriso - Caso contrário, eu teria morrido alí mesmo.  Mas eu cheguei morta ao hospital mesmo, então eu já não sei...
- Evelyn - A menina interrompeu
- Eu estou terminando... - Respirou fundo se recompondo. Arrumou sua postura e completou em um tom mais casual - Depois eles me enterraram. De modo que eu vi a terra sendo jogada em mim e tudo mais. E foi isso.
- Se você pudesse resumir em um sentimento essa noite
- Não é possível. Teriam que ser vários. Quatro no mínimo
- E quais seriam?
- "Preocupação", na hora que eu vi Philippe cercado. "Alivio" quando ele conseguiu fugir. "Desespero" na hora em que eles começaram a me rasgar, mas esse não foi o mais forte nem o mais importante.
- E qual seria o mais forte?
- Solidão
A palavra saiu firme como o tiro de um arqueiro. Direto, preciso e convicto. Esse era o sentimento que Doroty via palpável nos olhos da menina. Algo que comovia até o mais duro dos corações.
- Você tem medo de que se ficar sozinha algo vá lhe acontecer?
- Não estou preocupara com meu corpo, doutora, uma coisa que eu aprendi é que uma surra doi, mas passa. Uma machucado no corpo é facilmente curável. Mas a mente, a alma... Minha alma não foi machucada naquela noite, eu consegui cumprir o que ela me pediu, Philippe está bem. Mas naquele momento, doutora, sangrando, embaixo da terra, sentindo dores que a senhora nunca vai imaginar, eu parei para pensar na minha vida e me senti, como eu espero que nunca ninguem se sinta. 
- Então é assim que você se sente em relação ao mundo?
Evelyn deu um sorriso
- Não, doutora, o que eu sinto, o que eu sei, é que a vida já derruba a gente sozinha. A vida em sí é cruel, ela tem espinhos, mas porque eu vou me apegar a dor que ele me causam quando me perfuram os dedos, se eu posso me concentrar em tentar sentir o cheiro da rosa?

Diamante trincado


- Dra. Casper, O Dr. Kayle pediu para lhe avisar que a paciente será transferida para a ala de observação ainda hoje.
Kristin agradeceu a enfermeira comum sorriso. A pasta da paciente já estava sobre a mesa. O próprio Kayle já havia passado mais cedo em sua sala para avisar-lhe da mudança da garota.
Paciente: Evelyne.
Familiar ou Responsável: Megan Gray Wood
Idade: 19 anos. Entrada no hospital  as 04:47, em 09 de  Março.
Deu uma olhada novamente no histórico da garota. Conhecia o caso, já estava acompanhando o irmão da jovem. ao que pudera perceber os dois possuíam uma grande afinidade. Quando perguntou como ele a descreveria ele respondeu: Ela é forte e brilhante como um diamante. Kristin pegou seu caderno e fez uma primeira anotação. 

Caso: Diamante trincado
O homem passou a sua vida inteira caçando demônios...
Sem perceber que ele é o pior demônio que pode existir.


- Prontinho senhorita...- Disse o doutor Kayle abrindo as janelas - Imagino que esteja melhor de respirar agora sem todos aqueles tubos, sim?! - A garota não respondeu - Olhe, eu sei que é dificil. Mas... você nasceu de novo. Alguém lá em cima gosta muito de você. Seu corpo está reagindo maravilhosamente bem a alguns medicamentos. Seu útero está se regenerando como por um milagre e logo a senhorita poderá ser transferida novamente, só que dessa vez, para a ala de descanso. Logo poderá receber visitas. 

Kayle checou os medicamentos e o estado da garota, como imaginou, ela estava estável. Quando saiu encontrou o irmão mais novo da menina de prontidão como sempre, uma mulher parecia tentar acalmá-lo enquanto a Dra. Casper se aproximava. O menino insistia em querer entrar e ver a garota.
- Por favor, não grite no corredor, meu jovem. - Comentou enquanto saia e o deixava aos cuidados da Psicóloga.
- Phil, vamos - Insistia Megan
- Mas eu quero ver a Eve, ela está acordada eu sei...
Krinstin se abaixou e ficou com os olhos na altura dos de Philippe.
- Escute, ela está muito cansada mentalmente. Ela acabou de acordar, talvez seja melhor deixar ela se acostumar um pouco. Ficar um pouco consigo mesma para se fortalecer.
- Ela já é forte! 
- Até os diamantes trincam, Phlilippe. - Os olhos do garoto encheram de água. - Então o diamante precisa se remodelar para poder continuar forte e brilhante como antes. 
- Ela vai precisar se quebrar ainda mais?
- Ela vai precisar se transformar e com os pedaços que caírem, ela vai fazer outros diamantes para deichá-la ainda mais bonita. Ela só pecisa de um tempo para descobrir como transformar os pedaços quebrados em algo que vai deichá-la ainda mais brilhante. Entendeu?
- Sim - Respondeu resignado.
- Agora venha...Vam- A conversa foi interrompida pela sirene que alardeou para uma parada cardíaca. O Dr. Kayle voltou correndo e entrou abrupto seguido pela Dra Casper. Evelyn estava no chão, os aparelhos haviam desprendido de seu corpo na queda e alarmava a falta de batimentos cardíacos.
- O que estava tentando fazer, mocinha?! - Soltou o doutor enquanto a colocava novamente na cama
- Philippe...- Balbuciou com uma voz baixa de uma garganta machucada - Eu ouvi a voz...
- Eu estou aqui, Eve - O garoto ignorou o médico e foi até a garota. Ela levantou a mão com dificuldade e tocou o rosto do menino.
- Por que ela está assim? Ela está morrendo doutor?
- Ela só está com sono. A morfina faz isso.
- Ela ainda está tomando morfina? - Indagou a médica
- Morfina não é só para quando se está em cirurgias? - Megan se atreveu a questionar
- Ela está tomando tudo de mais criativo que a ciência conseguiu confeccionar. - Brincou - O organismo dela é muito resistente até mesmo contra o efeito dos remédios. 

Mesmo não sendo permitido ficar qualquer pessoa que não seja da equipe médica naquela sala, Kayle resolveu confirmar alguns dados com Megan e repassar algumas informações à Dra Casper de modo que Philippe e Evelyn puderam conersar por alguns minutos.

- Você está bem? - As palavras soavam fracas, como se a garota fisesse um esforço sobre-humano para conseguir pronunciá-las. O garoto confirmou com os olhos cheios d'água. - E Hunter?
- Snow está bem, ele sente a sua falta... Eu... sinto sua falta... - Ela apenas enxugou as lágrimas do menino com a mão em um gesto de carinho. Philippe estava quase abraçado com o braço de Evelyn, afagando o rosto na mão da garota. - Eles te machucaram tanto...
- Eu... venho da selva... braba... Eu rio... cara... do perigo. - Soltou  lentamente com um sorriso. Como sempre fizera todas as vezes em que se metia em alguma confusão por defender Philippe. O garoto caiu em prantos - Xiiiiiiiiiiiiii... Calminha... Vão tirar você daqui....
- Você não pode ficar fazendo essas coisas Eve. Você é uma menina, eu que devia te proteger.
- Quando você crescer você compensa...
- Eu lhe prometo! Eu vou te proteger e ninguem nunca mais vai fazer mal a você! - Enchugando as lágrimas que insistiaam em cair - Eu vou ficar do seu lado pra sempre... e nunca nenhum homem vai chegar mais perto de você
- Assim complica... e quando eu achar um namorado?
- Você não precisa de um namorado! Ele vai ser um chato que nem a Candice!
- Que os deuses me livrem... Eu não mereço um carma desses... - O garoto riu e o coração da menina encontrou paz. - Eu vou lhe contar um segredo, lippe...
- Diga...
-Nunca, nenum homem vai ocupar o lugar que você tem no meu coração. Para ver o seu sorriso... eu passo passo por qualquer coisa... E eu não me arrependo... de nada que eu fiz. Faria tudo de novo. Você... Lippe, é o meu sol... o meu céu... - O garoto a olhava emocionado. Conhecia o peso daquelas paravras. Ela tentou enfiar o dedo no naris do menino de modo que ele desmanchou a cara e começou a rir. - De um jeitinho especial e diferente, mas você é...


Então, depois de todo o esforço para continuar acordada, a morfina começou a ganhar a batalha e o corpo da garota começou a não obedecer.

Semi consciência


Uma dor vertiginosa me faz recobrar a consciência, mas, meu corpo está dopado demais para me obedecer. É difícil perceber alguma parte do meu corpo que não esteja enfaixada nesse momento. Consigo sentir o curativo pesando em minha bochecha. O que mais me incomoda na verdade é o fato de estar consciente, mas sem poder me mover, sentindo a vertigem de ter pessoas mexendo entre as minhas pernas. Parece que estão com dificuldade de retirar todos os pedaços de vidro de lá. 

O quarto é branco. Há uma janela no local que me mostra um céu nublado. O sol parece não estar querendo ver essa cena. Minha cabeça ainda quer explodir. Escuto o vidro dançando na bandeja de metal. É dificil dizer que sentimento esse barulho me trás. Os tubos que enfiaram nas minhas narinas incomodam. Várias máquinas parecem monitorar meus batimentos. Porque tanta preocupação assim em me manter viva se naquele momento, sangrando enfiada embaixo da terra, sentido dores que nem imaginava ser capaz de suportar, somente os vermes e os insetos foram minha companhia?

Mas, eu não posso reclamar. Eu fiz uma escolha, o que vier é conseqüência. Se fosse uma pessoa leiga, seria mais fácil, assim poderia pelo menos me revoltar contra os deuses, mas eu não sou. Eu cresci sabendo exatamente o que se responder a todas as perguntas de uma pessoa que passasse por uma situação assim. Além disso, eu os amo demais e eu particularmente me acharia injusta se os culpasse. Não foram eles que me sangraram como numa brincadeira...
Parece que Chad fez um bom serviço, os médicos parecem aflitos. Minha consciência foi embora outra vez, até que eu escuto alguns médicos conversando. Parecem querer retirar o meu útero. Meu coração se desesperou, era como atear fogo e jogar sal num terreno onde houve um desmatamento. Era extinguir qualquer possibilidade de vida. Tentei gritar um “não” em protesto, mas, possivelmente não tenha saído mais que um sussurro. “Não se preocupe” ele respondeu calmo como se fosse possível, “vamos fazer o possível para que este seja o ultimo recurso”. O outro médico olhava um tanto surpreso “Ela consegue manter a consciência?!”. “Ela é uma garota muito forte. Nem sempre os remédios a colocam pra dormir”. 

Quando noite chegava eu tinha a impressão de ver Philippe sentado, rezando ao lado da minha cama. Até que vinha uma enfermeira e dizia que era hora da troca de turno, que a equipe já estava indo e os outros não podiam saber que ele estava entrando na sala.  Vê-lo vivo e bem me acalmava o coração. Ele estava bem, era só o que me importava.

Um dia em especial houve bastante movimento. Talvez tenha sido logo que cheguei, mas não tenho certeza. Vários flashes e muitas vozes. " É ináceitável que eles saiam ilesos disso. É revoltante. ” alardeava um rapaz. A voz dos médicos era fácil de discernir. “Ela chegou morta, tivemos que ressuscitá-la com um desfiblilador. Eu nunca vi alguém sobreviver ao que ela passou. Era difícil identificar uma parte dela que não estivesse fraturada.” Ele mostrava umas chapas azuladas à pessoas fardadas, policiais, eu suponho. Um fotógrafo parecia chocado com as assinaturas mascadas a pelo meu corpo. O nome “Chad” era o maior deles. Exuberante, marcado na pele branca.

Nove nomes cravados na pele.
Chad...
 Broock...                   
                                         Clarck...
 Peter...                                                               
 Michel...                               
                       Carl...                                                                                                                        
                                                            Marchal...
 Andrew...                
         Gilbert...

Várias fraturas cranianas, um maxilar delocado, várias costelas quebradas. A coluna resistira por pouco. Hemorragia interna. Vias respiratórias obstruídas. Graves lesões na pelvis.. A genitália completamente destruída...  Um coração parado.

 A voz de uma mulher me pareceu estranhamente singular. Ela entrou na sala com um "Essa foi a garota que sobreviveu?!" Não me recordo de seus traços. Mas a sua voz ecoava me dando um frio na espinha, algo que estranhei sentir numa situação em que não sentia muita coisa. "Minha afilhada morreu pelas mão desses mesmos delinquentes, ficarei feliz em ajudá-lo com o que for preciso Senhor Foster..."

E tudo desaparece outra vez...

Escolhas


As vozes e os risos foram diminuindo. A dor foi cessando pouco a pouco até que Evelyn sentiu um abraço bastante conhecido. Abriu os olhos, a névoa lhe envolvia transmitindo a conhecida sensação de segurança e paz. A seu lado, o lago parecia lhe dar boas vindas.


O sangue ainda banhava seu corpo misturado a outros líquidos, embora a dor não fosse mais presente. Deu alguns passos e entrou no lago. A água era morna e aconchegante como o ventre de uma mãe. Viu cada marca e cada golpe com um grande pesar. Arrancou os pedaços de vidro entre suas pernas. A dor não existia ali. O cheiro das maçãs invadia a alma. Não imaginava como seria maravilhoso estar novamente na segurança de casa. Olhou mais uma vez para cada uma das várias feridas sobre o corpo. Lembrou que tantas vezes a sacerdotisa lhe repetira que o deus colocava desafios para que pudesse-mos superá-los. Para nos forçar a nos tornarmos mais fortes. Olhou as marcas e o sangue mais uma vez,  seu coração apertou. 
  - Eu lhe imploro...– Soou uma voz masculina que lhe fez acelerar o coração.- Não fique com raiva de mim...  

 Havia um homem sentado a beira do lago. Usava uma calça de couro de animal, o peito estava desnudo, em sua cabeça uma máscara ornada de metal ocultava a face. A mascara que cobria até o nariz, fazia referencia a face de um gamo e dela, se erguiam grandes chifres como os do animal. Evelyn se aproximou e notou as chagas no corpo do homem.
- Por que está ferido?- Se atreveu a perguntar 
- Porque nós estávamos com você, Lua nova... -  Ele estendeu a mão e outra mão tocou a sua. Uma mão delicada emergiu nas brumas sob a silhueta de uma mulher. Os cabelos tão vermelhos como os de Evelyn fora um dia, um olhar que passava firmeza, sabedoria e doçura. A mulher também estava banhada em sangue. Cada marca, cada golpe, cada desenho de violência que estava marcado em Evelyn estava ali, nas duas figuras... 
- Por quê?... – A garota perguntou. Porque tanta violência? Tanta maldade. Que mal ela havia feito para que a vida se voltasse assim contra ela. Mas não foi preciso fazer explicações. O casal a sua frente conhecia a essência da natureza humana. Conhecia todas as dúvidas e questões. Todos os impulsos e todos os medos.
- Porque, minha filha, esse é o destino de quem abraça a vida em sua plenitude.- Soltou a mulher com grande pesar. – Você, minha criança, aceitou dançar conosco a dança da vida. – Ela então, estava agora de pé. Dentro do lago, sua mão tocou a face de Evelyn e a garota pode sentir o quão era macia. - E a vida irá exigir de você como exige a poucos. Porque poucos são os que aceitam sair da linha de comodidade segura e se lançar nela... Sua vida, minha criança, será cheia de amores e beleza. Cada momento de felicidade será pleno e a teu ventre... estão destinados tesouros. – A mulher fez um gesto e a as folhas da macieira farfalharam com o vento. Vários pontos luminosos se desprenderam e voaram até o lago. Não tinham forma, Evelyn sequer podia contar quantos eram, mas eles riam... A garota sentia uma grande afinidade a essas massas de luz ainda sem forma que dançavam a sua volta. Seus olhos verteram lágrimas, tentou tocá-los, mas eles se dissiparam e voltaram à árvore. -

- Mas sua vida...- Agora o homem também estava no lago junto às duas - também será marcada em sangue e lágrima, Lua nova. Você sentirá dores tão profundas que matar sua própria alma não seria pior. Você vai perder o que você mais ama e seus invernos serão tão escuros que você pensará que não há sol em seu dia ou lua em sua noite. 

A menina olhava as duas figuras agora nervosa. O sangue dos três se misturava na água numa cor una.
- Você pode escolher ficar aqui. E não haverá dor ou medo para você. Sua alma descansará. Ou você pode escolher voltar para um mundo de esperança e caos.- Sussurrou a mulher de forma suave enquanto enlaçava os dedos na mão de Evelyn. 
 − Haverá primaveras?! – Soltou a garota um tanto temerosa, o homem sorriu, um sorriso que aqueceu o peito, o brilho em seus olhos fazia o coração da menina acelerar. Aquele brilho nos olhos era algo que ela nunca iria esquecer... 
 - Sempre haverá primaveras... Não importa quantos invernos estejam por vir, lua nova, sempre haverá um broto para romper a neve. Assim como você... E nós sempre... Sempre vamos estar a seu lado. Mesmo que você não veja sol ou lua em seu céu. Em cada dor que você sofrer nós vamos estar lá. 
- Afinal, disse a mulher em um tom mais ameno. Todo nome carrega uma energia e Evelyn significa tanto luz como vida...
- Voce já tem uma resposta a nossa pergunta, lua nova?

 Evelyn já sabia qual a resposta mas não precisou pronuncia-la. A mulher deu um sorriso e deu um beijo nos lábios da garota. 
- A sua boca é minha, e as minhas palavras são suas... Coragem, minha filha...

O homem segurou uma das mãos se Evelyn e ela começou a sentir todo o peso e toda a dor de cada uma das feridas. 
- As suas mãos são minhas... Ele terminou a frase com algo que a dor que se tornava alucinante não a permitiu ouvir. Até que abriu os olhos. Philippe estava rezando a seu lado pedindo para que Nossa Senhora a protegesse e não a deixasse partir.  Estava em um quarto de hospital. O corpo de Evelyn parecia entorpecido embora a menina conseguisse sentir as dores dos ferimentos. Sua cabeça doía, latejando como um grito de socorro ao seu corpo. Até que para o alívio da garota, a dor foi tão forte que ela desmaiou mais uma vez.