Escolhas


As vozes e os risos foram diminuindo. A dor foi cessando pouco a pouco até que Evelyn sentiu um abraço bastante conhecido. Abriu os olhos, a névoa lhe envolvia transmitindo a conhecida sensação de segurança e paz. A seu lado, o lago parecia lhe dar boas vindas.


O sangue ainda banhava seu corpo misturado a outros líquidos, embora a dor não fosse mais presente. Deu alguns passos e entrou no lago. A água era morna e aconchegante como o ventre de uma mãe. Viu cada marca e cada golpe com um grande pesar. Arrancou os pedaços de vidro entre suas pernas. A dor não existia ali. O cheiro das maçãs invadia a alma. Não imaginava como seria maravilhoso estar novamente na segurança de casa. Olhou mais uma vez para cada uma das várias feridas sobre o corpo. Lembrou que tantas vezes a sacerdotisa lhe repetira que o deus colocava desafios para que pudesse-mos superá-los. Para nos forçar a nos tornarmos mais fortes. Olhou as marcas e o sangue mais uma vez,  seu coração apertou. 
  - Eu lhe imploro...– Soou uma voz masculina que lhe fez acelerar o coração.- Não fique com raiva de mim...  

 Havia um homem sentado a beira do lago. Usava uma calça de couro de animal, o peito estava desnudo, em sua cabeça uma máscara ornada de metal ocultava a face. A mascara que cobria até o nariz, fazia referencia a face de um gamo e dela, se erguiam grandes chifres como os do animal. Evelyn se aproximou e notou as chagas no corpo do homem.
- Por que está ferido?- Se atreveu a perguntar 
- Porque nós estávamos com você, Lua nova... -  Ele estendeu a mão e outra mão tocou a sua. Uma mão delicada emergiu nas brumas sob a silhueta de uma mulher. Os cabelos tão vermelhos como os de Evelyn fora um dia, um olhar que passava firmeza, sabedoria e doçura. A mulher também estava banhada em sangue. Cada marca, cada golpe, cada desenho de violência que estava marcado em Evelyn estava ali, nas duas figuras... 
- Por quê?... – A garota perguntou. Porque tanta violência? Tanta maldade. Que mal ela havia feito para que a vida se voltasse assim contra ela. Mas não foi preciso fazer explicações. O casal a sua frente conhecia a essência da natureza humana. Conhecia todas as dúvidas e questões. Todos os impulsos e todos os medos.
- Porque, minha filha, esse é o destino de quem abraça a vida em sua plenitude.- Soltou a mulher com grande pesar. – Você, minha criança, aceitou dançar conosco a dança da vida. – Ela então, estava agora de pé. Dentro do lago, sua mão tocou a face de Evelyn e a garota pode sentir o quão era macia. - E a vida irá exigir de você como exige a poucos. Porque poucos são os que aceitam sair da linha de comodidade segura e se lançar nela... Sua vida, minha criança, será cheia de amores e beleza. Cada momento de felicidade será pleno e a teu ventre... estão destinados tesouros. – A mulher fez um gesto e a as folhas da macieira farfalharam com o vento. Vários pontos luminosos se desprenderam e voaram até o lago. Não tinham forma, Evelyn sequer podia contar quantos eram, mas eles riam... A garota sentia uma grande afinidade a essas massas de luz ainda sem forma que dançavam a sua volta. Seus olhos verteram lágrimas, tentou tocá-los, mas eles se dissiparam e voltaram à árvore. -

- Mas sua vida...- Agora o homem também estava no lago junto às duas - também será marcada em sangue e lágrima, Lua nova. Você sentirá dores tão profundas que matar sua própria alma não seria pior. Você vai perder o que você mais ama e seus invernos serão tão escuros que você pensará que não há sol em seu dia ou lua em sua noite. 

A menina olhava as duas figuras agora nervosa. O sangue dos três se misturava na água numa cor una.
- Você pode escolher ficar aqui. E não haverá dor ou medo para você. Sua alma descansará. Ou você pode escolher voltar para um mundo de esperança e caos.- Sussurrou a mulher de forma suave enquanto enlaçava os dedos na mão de Evelyn. 
 − Haverá primaveras?! – Soltou a garota um tanto temerosa, o homem sorriu, um sorriso que aqueceu o peito, o brilho em seus olhos fazia o coração da menina acelerar. Aquele brilho nos olhos era algo que ela nunca iria esquecer... 
 - Sempre haverá primaveras... Não importa quantos invernos estejam por vir, lua nova, sempre haverá um broto para romper a neve. Assim como você... E nós sempre... Sempre vamos estar a seu lado. Mesmo que você não veja sol ou lua em seu céu. Em cada dor que você sofrer nós vamos estar lá. 
- Afinal, disse a mulher em um tom mais ameno. Todo nome carrega uma energia e Evelyn significa tanto luz como vida...
- Voce já tem uma resposta a nossa pergunta, lua nova?

 Evelyn já sabia qual a resposta mas não precisou pronuncia-la. A mulher deu um sorriso e deu um beijo nos lábios da garota. 
- A sua boca é minha, e as minhas palavras são suas... Coragem, minha filha...

O homem segurou uma das mãos se Evelyn e ela começou a sentir todo o peso e toda a dor de cada uma das feridas. 
- As suas mãos são minhas... Ele terminou a frase com algo que a dor que se tornava alucinante não a permitiu ouvir. Até que abriu os olhos. Philippe estava rezando a seu lado pedindo para que Nossa Senhora a protegesse e não a deixasse partir.  Estava em um quarto de hospital. O corpo de Evelyn parecia entorpecido embora a menina conseguisse sentir as dores dos ferimentos. Sua cabeça doía, latejando como um grito de socorro ao seu corpo. Até que para o alívio da garota, a dor foi tão forte que ela desmaiou mais uma vez.

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